Fonte: Top Mídia News
Era início do regime militar do Brasil. Os primeiros anos, nos quais a ditadura e movimentos de resistência ainda procuravam se organizar. Momento em que muitos tentavam entender o que exatamente havia ocorrido, e desenvolver estratégias de luta. Ela já carregava o embrião da luta.
Secundarista, à época, e nascida em seio operário, com 18 anos já trabalhava em fábricas e estudava a noite em São Paulo. Influenciada pelo irmão, também operário e estudante, ela entrou para o movimento e para o Grupo de Osasco, início do que se transformaria depois o conhecido Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e o Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares) [grupos de luta armada e resistência ao regime].
Ela tinha vinte anos quando passou pela primeira prisão. Ali, junto de uma amiga, conseguiu sustentar o discurso que manteria durante todo o processo de militância, em que viveu os piores momentos dos anos de chumbo. Mas ali, após os militares reprimirem a Greve de Osasco, em 1968, foi apenas um indício do que seria uma interrogação do regime.
Ana Gomes é professora de sociologia e pesquisadora da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul) e uma das memórias vivas da resistência à Ditadura Militar no Brasil. Ana foi presa e torturada na Operação Bandeirante (OBAN), que depois seria chamada de Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), comandada, à época, pelo Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, – prisão que ela compartilhou com a presidente Dilma Rousseff, que participava do mesmo grupo de militância -, e cujo comandante foi homenageado pelo deputado federal do PSC, Jair Bolsonaro, no último domingo (17).
Além da tortura e da prisão, amigos de Ana sofreram torturas quase impossíveis de serem descritas, foram mortos, e outros ainda constam como “desaparecidos”. E a professora, que já havia contado “a história que não pode ser esquecida”, quando falou da homenagem à Ustra, se emocionou e pareceu lembrar que nem um dia inteiro de conversa seria capaz de colocar todos os detalhes das violências sofridas na ditadura. “Tem muito mais pra contar”, disse ela.
VAR-Palmares
“A primeira coisa que eu posso dizer é que a minha história não é a minha história. Ela é a história de uma geração”, começou Ana, enquanto sentávamos em sua sala de estar, que era atingida por uma variação de luz que dava a impressão de estar fazendo um jogo de sombras quando detalhes mais difíceis de serem contados eram relatados. “Ele foi morto na tortura”, contou, sobre um soldado pego quando Carlos Lamarca e outros militares deserdaram e se juntaram ao VPR para a luta armada, grupo que Ana fazia parte na época. O soldado foi torturado para contar onde estariam Lamarca e os outros.
“Já tinham muitas prisões, a Colina [Comando de Libertação Nacional] em Minas já tinha sofrido um baque enorme, e aí vai começar torturas das mais horrorosas. Alguns companheiros foram usados como cobaia [treinamento de militares brasileiros por militares dos Estados Unidos]”, conta Ana, sobre o período. Ela relata o segundo episódio, depois da greve de Osasco, em que se livrou da prisão. Alguns companheiros foram pegos, entre eles o marido de Ana na época.
“E nessa também cai meu ex-marido e o presidente do sindicato, inclusive ele é preso na minha casa, a minha casa era um aparelho. Meu ex-marido resiste o dia inteiro à tortura. Ele já chega me contando, ‘olha você me desculpe, eu estava metido em uma coisa que você não sabia’”, que foi a tentativa dele de livrar a esposa. “Ele estava com as costas cheia de vergões e depois ficou com 20% a menos da audição e tinha periódicos sangramentos no ouvido. Dente com cárie, ele levou choque dentro. Eu digo isso pra vocês verem que não era uma brincadeira”, conta.
“A coisa começou de maneira muito feroz”, explica, sobre a repressão do regime às organizações da época, em que companheiros de luta começaram a serem mortos. “Aí eu tenho que entrar definitivamente para a clandestinidade, porque eu ainda podia visitar meus pais, porque aí eu mais uma vez consegui escapar”. A professora também contou sobre a única mulher presa à época, que foi “barbaramente torturada”. Depois disso, Ana ficou um ano “na clandestinidade”, época em que Colina e VPR se fundiram e formaram a VAR-Palmares. “Foi aí que a Dilma foi mandada pra São Paulo, porque ela era procurada em Minas, e aí que eu conheci a Dilma”.
Em 1969, houve o famoso episódio do roubo do cofre do Adhemar Pereira de Barros, feito pelo VAR-Palmares. Foi nesse episódio que Ana perdeu o cunhado. Ele tinha apenas vinte anos, e estava no carro junto a um companheiro, quando algum problema mecânico ou no pneu fez com que tivessem de parar o veículo. A polícia se aproximou e, ao vê-los armados, deu-se início a tensão.
O cunhado de Ana, João, conseguiu fugir, levando um tiro, e o outro morreu ali mesmo. João não sabia o endereço do aparelho, informação restrita para que não fosse passada aos militares, caso os militantes fossem presos. João pegou um táxi e foi para a casa da irmã. Ali, um guarda de rua o viu entrando na casa, sangrando, e chamou a polícia. Em pouco tempo a rua estava cercada. João foi preso.
“A minha cunhada disse que ele entrou na casa com uma bala no corpo e quarenta dias depois ele morreu, e ela conta que ele estava com muitos ferimentos de bala”, relatou Ana, sobre o processo de tortura a que foi submetido o cunhado. Dessa época, a professora ainda têm pesadelos constantes, em que precisa encontrar um endereço ou telefone para fugir. “São coisas que ficam, e nem acho que fui a que ficou com mais marcas disso”, explica, relatando diversos suicídios de companheiros, que não suportaram os traumas do regime.
Ao longo da conversa, diversos nomes e episódios das violências do regime iam surgindo no fio temporal de memória construído por Ana Gomes. É o caso de Eduardo Leite, que ela conta ter sido brutalmente assassinado. “Foi preso em São Paulo, foi torturadíssimo, quando eles acharam que ele não tinha mais nada pra dizer, – isso foi autoria do Sérgio Fleury [delegado do DOPS de São Paulo], – ele foi levado para aquelas chácaras que tinham em São Paulo e foi picado em pedaços, mas não foi picado em pedaços depois de morto, foi vivo”.
Primeira prisão
Ana foi presa um ano depois, período que ela chama de “a queda da VAR-Palmares”. A professora relatou com cautela, explicando o que sofreram os membros de diferentes organizações, – que sofriam “torturas diferentes”, que podiam levar em conta maior ou menor grau “subversivo” das organizações na visão do regime, ou o machismo dos militares.
Ana contou, por exemplo, que mulheres que não eram ligadas à resistência por algum homem e que entravam para a luta por conta própria, acabavam sendo mais violentadas, por representarem uma “afronta” maior aos ditadores. Os relatos são momentos que não chegaram, muitas vezes, a serem comentados entre os companheiros que sobreviveram, ou que não foram contados para os filhos, pela dificuldade de narrar as violências físicas, psicológicas e simbólicas que deixam marcas que até hoje influenciam a vida dessas pessoas.
“Eu cheguei no ponto, nesse que me entregaram e o cara que era da equipe de capturas segurou meu braço e falou: ‘fique calma, você ta presa’. Eu pensei… você tem segundos pra pensar, eu pensei: ‘eu corro ou fico?’. Depois eu soube que estava tudo cercado, eu seria metralhada. Depois eu soube de outro companheiro que tentou fugir e foi metralhado. Sabe aquele tipo de decisão que você toma e que por um segundo você poderia ter morrido?”, foi o momento, em 1970, no início do ano, em que Ana foi presa.
Eles me levaram para uma casa, era a Operação Bandeirante, que depois virou DOI-CODI. Eles usavam nome de guerra, me lembro do capital Homero, não era Homero o nome dele. Eu me lembro que eu fui colocada dentro da sala e pensei: ‘bom, fui presa, agora é aguentar’. Me levaram e já me deram choques e pancada, mas o que eu passei não dá pra ser comparado ao que outros companheiros passaram. Mas depende muito do que aquilo representa para você, do que a pessoa aguenta”.
“A tortura não é só física, ela é psicológica… ela é… de uma maneira assim”, Ana contava intercalando silêncios, buscando descrever aquilo que a linguagem não consegue alcançar. “Um exemplo… eles deixavam – durante muito tempo eu tive horror a portas e janelas abertas -, porque eles deixavam na casa, – nós estávamos em 4 mulheres, a Dilma ficou na sala do lado -, e eles deixavam a porta aberta, aí passava um: ‘daqui a pouco a gente vem te buscar viu?’ e apontava pra uma de nós. Aí você passava o dia inteiro esperando, sabe?… Aí os gritos dos companheiros, porque a noite era um horário privilegiado de tortura, e as ameaças. Tinha um soldado, que não sei se ele fazia por conta própria, e ele passava e dizia assim: ‘você hein, ta levando no bico né? Eu você não engana com essa cara de menina boazinha, você com documento falso, com nome de guerra, conhece metade da organização e não tem nada a ver com isso, eu você não engana’. Então você imagina a tensão…”.
Depois do interrogatório, “tranquilizaram” ela e os companheiros e disseram que só seriam interrogados novamente em vinte dias. Não foi o que aconteceu.
“No dia seguinte me levaram. Esse companheiro e eu. Ele é levado pra um lado e eu para o outro. E está sentado na mesa de interrogatório o mesmo policial que tinha me interrogado quando o meu marido foi preso. Daí ele olhou pra mim e disse assim: ‘você está me reconhecendo? Eu que te interroguei no dia que o seu marido foi preso’. Aí ele se entregou de bandeja, o machismo, disse assim pra mim: ‘pois é, quando eu soube que você tinha sido presa, eu pensei, será que aquela menina conseguiu me dar uma rasteira?’. O machismo dele não permitia que ele tivesse sido enganado por uma mulher e ainda com cara de menina”.
“Aí, sabe qual foi a tortura que ele usou comigo? Ele começou a me descrever como tinha morrido o meu cunhado, porque eles queriam o meu irmão. ‘Se você não contar a gente vai fazer com você a mesma coisa que fizemos com o seu cunhado. Eles confessaram que assassinaram ele. Ele começou a descrever o processo de deteriorização do corpo dele, foi me contando com detalhes. E ele me dizia assim: ‘no fim, ele fedia’”.
Ana ficou nove meses presa em São Paulo. A figura do Coronel Ustra passando entre as celas é uma memória que ela guarda até hoje. Três dias depois de solta e de passar por auditoria com militares, Ana foi presa novamente.
“Tinha um companheiro da VAR preso e foi uma coisa extremamente traumática pra mim. Ele era da direção da organização. E aí chegaram, puseram eu e esse companheiro e disseram assim: ‘nós queremos esse endereço e ele disse que você conhece’. E o capitão falou assim: ‘olha, eu vou deixar vocês sozinhos e um de vocês vai dar o endereço se não eu vou voltar aqui e vou colocar vocês dois em um pau de arara até um de vocês falarem’. Esse companheiro olhou pra mim e falou: ‘por favor, dê esse endereço, eu não aguento mais ser torturado’. Foi uma coisa que me marcou, diante de um pedido desse, o que você faz?”.
Resquícios da ditadura
Ana acabou contando o endereço, que já não era um aparelho da resistência, o que a tranquilizou na época. Ela foi solta três dias depois. A história dessa professora, daria, sozinha, um livro. Ana viu companheiros desaparecerem, serem mortos e o próprio irmão passou por níveis de torturas quase indescritíveis. Ela resistiu e continou. Foi para o Chile, onde continuou organizada, e depois do golpe militar do Chile, se exilou na Suécia, onde o irmão vive até hoje. Graduou-se e pós-graduou na Universidade Paris-Sorbonne, na França.
Hoje, Ana Gomes é professora e pesquisadora. Feminista conhecida em Campo Grande, ela não desistiu. Não desistiu, especialmente porque, como ela mesma contou, ainda vê os resquícios da ditadura, cujos porões no Brasil foram mantidos trancados, mesmo pelo governo da mulher que foi presa com ela durante o regime. Revolta com o partido e com a presidente que ela nunca vai deixar de carregar.
Para Ana, a ditadura não deixou apenas traumas, como o medo irracional em uma parada na estrada para averiguação policial, ou o desconforto com autoridades. Para ela, acompanhar ações da polícia militar ou ouvir Bolsonaro homenagear o homem que comandou a operação onde foi torturada e onde amigos desapareceram e nunca mais voltaram, mostra que muitas coisas ainda não mudaram. E é por isso que para a professora do curso de Ciências Sociais da UFMS, mesmo que revisitar o passado seja muitas vezes repetir uma dor que ficou em algum canto deixada de lado, contar a história é uma forma de que ela nunca seja esquecida. É uma forma de dizer: nunca esqueceremos.
Parabéns, colega! Muito obrigada por nos fazer lembrar dessa parte escura da História do Brasil. É muitíssimo importante para os que a ignoram.